(uma lista de compras feita por michelangelo em 1518.)
deliberar é perder.
escolher é sempre excluir; no entanto, nosso olhar sempre recai no copo “meio cheio”: quando escolhemos, enchemos os olhos com o que ganhamos e de pronto esquecemos o que perdemos.
não digo que seja geracional, mas vejo que hoje - e muito na dinâmica das redes sociais -, há muita paixão por listas. “dez músicas/filmes que completam 40 anos em 2025”, “dez lugares para conhecer ao visitar o destino tal”, “dez melhores restaurantes da cidade x”. e sempre há alguém a dizer que “esqueceram” isso ou aquilo, ou que as escolhas não são as melhores, etc. o que se mobiliza, de maneira comezinha, é a necessidade de se afirmar que dispomos de um juízo melhor que o do outro, ou ainda, que o outro acertou em suas escolhas - porque elas se parecem com as que eu, sempre o sujeito mais importante do mundo, faria.
listar o que há de “melhor” tem sempre um pendor pedagógico. quem faz uma lista de certa forma visa a uma relação do que o outro deve atingir, do que considera necessário que o outro acesse para que esteja em seu patamar, ou compartilhe daquilo que gosta ou considera que deve estar na agenda ou é mais importante. essa pedagogia, como tudo no contemporâneo, se atravessa de mercado. colocar na lista é “dar valor” e “pôr em circulação”. a lista na mão é um pouco a tal da moeda falsa - que vale enquanto um comprador consegue passar a outro e a outro, sem que seu ardil seja descoberto.
trabalho há alguns anos a partir de uma lista; no caso, a lista dos livros que a universidade do meu estado seleciona como orientadora de sua prova do vestibular - que ainda existe, enquanto a maioria das universidades do país já aderiu integralmente ao enem. o exame nacional, aliás, não tem uma lista - e esse talvez seja um de seus maiores problemas na abordagem dos textos, em especial os de literatura. pode-se encontrar no dia da prova qualquer texto de qualquer autor de qualquer tempo - nessa falsa equivalência do “tudo é texto” - e espera-se que se adivinhe o que dele deduziu um elaborador de prova em cinco pequenas proposições lacônicas. aliás, sequer por vezes se faz referência ao nome completo do autor do texto - ele, aliás, pouco importa. e não porque o finado barthes tenha “matado o autor” lá em 1968, mas simplesmente porque as proposições se fazem fora de qualquer contexto mais amplo ou mais complexo. e quando se trata de poesia, tudo fica ainda mais catastrófico.
desvio do ponto. ainda sou dos que defendem que precisamos de listas mínimas para orientar processos como esse. mesmo quando negamos as listas, como professores, as fazemos. precisamos selecionar, precisamos saber perder. toda seleção é uma antologia - um discurso das “flores”, um buquê que montamos para oferecer a alguém que muito provavelmente vai achar tudo detestável - porque não gosta de rosas ou tem alergia a crisântemos ou prefere o colorido das flores do campo.
as listas de leitura das provas nos mostram coisas curiosas. de um lado, vê-se nas universidades do sul-sudeste que ainda insistem em manter processos próprios um esforço em tornar suas seleções mais contemporâneas, sem, no entanto, abrir mão de alguma tradição literária. há universidades que ainda colonialmente pagam seu tributo aos portugueses; outras, que olham para essa “comunidade” imaginária em torno dos países colonizados por portugal e do que suas vozes têm em comum conosco. há, ainda, lugares que têm dado espaço a clássicos traduzidos. há tamanhos divergentes de listas - do que seria o esperado para um estudante em um ano, em um país com médias baixíssimas de leitura - e inclusão de textualidades como a música, a HQ, o cinema. volta sempre a discussão de que “os jovens leitores não se conectam aos autores antigos” (por vezes, nem aos novos), mas muito provavelmente a escola é o único lugar que vai apresentá-los. ou que deveria apresentar a alguma leitura. se não o faz, as razões são muitas e suplantam a própria escola e seu parco poder, esmagada entre big techs, famílias carolas e a apatia de quem não consegue ver sentido em ler coisa alguma, reforçada por influenciadores que ganham dinheiro dizendo que de nada vale saber nem ler e que o negócio é nem ler, “empreender” e insultar. exige-se heroísmo desse judas malhado chamado professor, sem que tenha sequer a condição de fazer o mínimo. “por favor, salvem a professorinha”, repetimos com o personagem de falabella desde os anos 90 (que foram ontem ou agora ou há um século).
mais elegemos que lemos, glosando valéry.
na última semana, alguma comoção e outros silêncios se fizeram em torno de uma lista, publicada pela folha, com o que seriam os “melhores livros de literatura brasileira do século 21”. a lógica foi, de fato, a de uma eleição. 100 jurados escolhidos pelo jornal deram seus votos, e por contagem simples, os 25 livros mais votados foram apontados a um “pódio”. outros tantos, com menos citações, ficaram como uma “menção honrosa”, às beiras de galgar aqueles degraus. alguns comentaristas eufóricos celebraram a aparição de vozes que em outros tempos foram completamente suprimidas de qualquer proximidade a um “cânone” literário; encontra-se ali a presença de escritoras e escritores negros, um indígena, autores LGBTQIA+, coisa que talvez fosse impensável anos atrás - talvez nem tantos anos atrás. e há que se celebrar que essas vozes sejam ouvidas - embora a ideia de identidade também já tenha sido deglutida pelo estômago sem dogmas do capital.
o marcelo labes fez uma bela análise estatística das limitações dessa listagem que logo saltam à vista de um leitor menos desavisado e eufórico. embora tenhamos ótimos livros ali listados, não deixa de ser sintomático que a lista se pareça à de mais vendidos - o que se coaduna com a primazia da companhia das letras entre as casas editoriais participantes desse “panteão”. emmanuel santiago, ao comentar a lista, também apontou para a macro e a micropolítica que se traduzem nesse jogo de indicações e “afetos”, usando a metáfora de que seguimos em um “latifúndio monocultor de romances” da companhia das letras. a poesia, nocauteada de tempos, timidamente apareceu com duas poetas que considero geniais - ana martins marques e angélica freitas. mas isso talvez não seja sintomático apenas de sua “perda de lugar” que não é de hoje - mesmo entre os leitores vorazes e escritores ouvidos para compor “a lista”. todo mundo tem na manga alguém que poderia ou deveria estar na lista e não está. de todo modo, definir o jurado define o julgamento, como definir a projeção cartográfica define o mapa, estica ou encolhe continentes, centraliza ou descentra países. por isso, nem vale de muito fazer escrutínio do que tal lista representa.
é velha a história de que todo panorama tende à falha (“que lugar para mallarmé num panorama? da literatura? francesa?”) e que um mapa que não reduza o território acaba abandonado por inutilidade (o conto de borges), uma vez que representar é uma tarefa de reduzir, cortar, perder, excluir. e talvez demos atenção demais a juízos vaticinados por grandes veículos e divulgadores, enquanto poderíamos construir outras relações a partir de outros parâmetros. a partir de muita coisa sobre a qual houve menos burburinho e talvez capte melhor esse espírito de tempo esquisito em que vivemos. autores hoje reverenciados foram completamente ignorados em seus tempos - ou talvez nunca tivessem existido se seus amigos tivessem atendido ao pedido de queimar o que deixaram.
enfim, vivemos tempos bastante literais. listo.