era visível quem era aquele grupo: plena tarde de dia de semana, engomadinhos, roupas escuras, o viço do leite com pera que não sabe preparar o próprio mucilon. celulares sempre à mão, takes e mais takes do próprio rosto, dos próprios comentários, da própria necessidade infinita de produzir cenas, tentar ironizar o que acontecia, transformar o outro em ridículo e, claro, parecer se não inteligente, ao menos descolado. o protocolo dos aspirantes a nikolas ferreira locais é bastante semelhante ao do próprio, ainda que percam em seguidores, projeção, votos, talvez mesmo em esperteza. junto deles, como uma espécie de sugar daddy, o agora grisalho secretário municipal de assistência social, fazendo qualquer coisa menos trabalhar em horário de expediente. em comum, todos tinham a passivo-agressividade, com repiques de dar o tapa e esconder a mão, e o desejo de “produzir conteúdo” às custas de um lugar que não alcançam compreender - a universidade, essa instituição inventada ainda na idade média mas que só veio a ter berço no brasil há pouco mais de um século.
o conselho universitário da ufsc - órgão deliberativo máximo da universidade, composto por 70% de docentes da própria universidade e de outros 30% de conselheiros divididos entre servidores técnico-administrativos, estudantes de graduação e pós-graduação e “representantes externos” (indicados por entidades patronais, como a fiesc, e de trabalhadores, como o sinte) - discutiu por longas e acaloradas reuniões os encaminhamentos da comissão da memória e da verdade da universidade. um deles dizia respeito a retirar as homenagens a colaboradores da ditadura civil-militar - em especial, aqui, o “pai fundador” da ufsc, joão david ferreira lima, que passou a dar nome ao campus central da universidade, na trindade, em 2003 (e que ainda tem um busto algo fálico preso a uma armação oval na frente da reitoria). possivelmente a claque constrangedora de meninos que esteve nas últimas reuniões do conselho sequer conhecesse o ex-reitor. mas eis que a extrema direita resolveu tomar para si as dores da “história” e resolveu carregar consigo o espantalho de “defender a tradição” (a família e a propriedade), transformando uma discussão sobre uma homenagem em um cavalo de batalha enorme contra a universidade. essa posição, aliás, lhes é costumeira: desde que aumentou o número de pessoas pobres nas universidades, elas literalmente deixaram de lhes servir; a isso somaram táticas negacionistas, discurso anticientífico e mentiras e pronto, fingem defender a universidade quando nada fazem para defendê-la e tudo para destruir o que resta dela. a diferença talvez seja que desta vez, nós os pautamos.
por isso foi no mínimo curioso ver o quanto esses moços, pobres moços encarniçadamente tentaram produzir todo tipo de factoide ao longo das reuniões do conselho. acompanhados de alguns viúvos da ditadura com idade para tê-la vivido, lá estiveram eles todo o tempo (ou quase todo, pois na penúltima reunião fugiram antes do pedido de vistas) da discussão. a postura era conhecida: provocações dirigidas a estudantes, professores e servidores; aproximações assediosas com vistas a tirar o outro de controle e, se possível, filmá-lo em destempero; agredir verbalmente para, caso a violência escalone, dizer-se perseguido e agredido. não posso deixar de cumprimentá-los pela pachorra - porque não deve ser fácil ficar em minoria (defendendo o errado) diante de uma plateia que entre aplausos e palavras de ordem se posicionava contra a ditadura e seus colaboradores. aliás, ainda mais curioso era perceber que filmavam como se tivessem flagrado algo proibido quando a plateia bradava “ditadura nunca mais”; fiquei pensando se se contrapor à ditadura deveria ser, para algumas mentes de ervilha, algo vergonhoso. se for, isso só prova o ponto de que esses pseudolibertários, em verdade, defendem o autoritarismo, que procuram imputar aos outros. ou que outra razão teriam para sair de seu conforto para gritar em defesa de um homem que sequer conheceram - mas que carrega um sobrenome muito tradicional na cidade?
certos momentos beiraram o patético. na sexta-feira, quando entraram no auditório em que as sessões abertas ocorreram - graças ao pedido da própria comunidade universitária, que acolhe inclusive esse “contraditório” - os moços começaram a colar alguns cartazes na parede oposta àquela em que os estudantes do dce e de outras organizações de esquerda haviam pendurado faixas e bandeiras. os cartazes (em vermelho e preto) traziam frases de efeito: “quem reescreve o passado falsifica o futuro” - como se eles próprios não estivessem, todo o tempo, buscando reescrever e falsificar evidências, negando o conhecimento produzido por especialistas de todas as áreas. em outra, “respeitem quem ergueu a ufsc” (o que me fez imaginar ferreira lima, topete e óculos, levantando tijolos e cimento, sozinho; é inegável seu papel de articulador político para a fundação de uma universidade federal em florianópolis, mas o homem sequer queria que se construísse a cidade universitária da trindade); ou ainda, “a ufsc está caindo aos pedaços, mas o importante é lacrar” (como se eles estivessem buscando outra coisa que não isso no meio daquele debate).
observei de perto e tive um verdadeiro exercício de estoicismo diante da postura desses rapazotes (alguns um pouco velhos demais para o epíteto) nas últimas reuniões. quando o reitor pôs em votação se o conselho acataria ouvir algumas pessoas externas que haviam pedido direito a manifestação - o ex-reitor diomário, familiares de professores perseguidos durante a ditadura e delatados por ferreira lima, em especial os profs. galotti e mamigonian - os mazanzas, que não eram conselheiros, acharam que podiam votar. levantaram as mãos. detalhe: o rito e a estrutura do conselho havia sido explicada ao início. a plateia, logicamente, riu da puerilidade dos que não sabiam a diferença entre um conselho e uma assembleia. ridicularizados, aqueles que gostam de ofender e constranger não conseguiram reagir senão tentando ridicularizar os oponentes, questionando a defesa da democracia do movimento estudantil, sem muito sucesso nem atenção. evocações a “maduro” e “che guevara” procuravam tirar a discussão do que se propunha a ser - movimento que também é típico, uma vez que são incapazes de debater qualquer assunto em profundidade e apelam sempre para um “e o fulano?”. “look over there!”
irônico também do oportunismo foi reagirem dizendo “vão calar uma mulher?” quando pessoas da plateia se manifestaram durante a fala da advogada da família de ferreira lima. logo os detratores do feminismo, que dão suporte a uma deputada que orgulhosamente se declara “antifeminista”, apelando para esse ponto - e querendo fazer parecer que quem é contra os direitos das mulheres são os outros. a advogada, aliás, em dado momento, solicita ao reitor que “peça à plateia para parar de rir, pois está se desconcentrando”. talvez, apenas talvez, o riso tenha a ver com o teor da sustentação oral, que diante das provas documentais apresentadas mais de uma vez, parecia realmente risível. toda a cena mostrava ser insustentável defender o homem quando confrontado com suas próprias palavras. mas bem, advogados recebem seus honorários para defender quem os paga, e para isso fazem o que podem.
num determinado momento, diante dos gritos do secretário municipal que não estava trabalhando em horário de expediente, e sim buscando insultar representantes da comunidade universitária que estavam no auditório, houve reações. uma senhora da plateia, sentada pouco à minha frente, dizia que o secretário estava prevaricando. instantaneamente, alguns daqueles garotos de recados da claque lhe apontava o celular e pedia que ela falasse olhando para a “lente da verdade” (as lentes, aliás, foram uma metáfora à parte, no parecer de vistas) - e ela falava. logo começaram a questionar por que ela os estava filmando antes, e ela respondia que estava registrando o secretário prevaricador. isso enquanto insistentemente procuravam produzir imagens das outras pessoas do recinto para alimentar suas redes. quando se veem expostos, não gostam de provar do próprio veneno.
nesse mesmo momento, uma pessoa ao fundo da plateia questionou o secretário sobre seu irmão - com o qual vive uma longa batalha judicial, que expôs muitas questões que certamente não gostaria de ver expostas. e eis que ele se vira e começa a dizer que o irmão “está quase preso”, começa a perguntar se o outro não quer gravar um vídeo com ele e sugere que poderiam resolver as coisas “lá fora”. após as reuniões, houve episódios de tentativas de constrangimento a estudantes no campus, por parte deste grupo. em outras oportunidades, o mesmo movimento se fez para tentar criar situações de agressão que pudessem ser usadas para colocar nos adversários o ônus da violência - quando insistentemente ela é buscada para ser manipulada.
mais de uma vez, ouviram-se xingamentos insidiosos, homofóbicos inclusive. hoje, por exemplo, enquanto falava um estudante da pós-graduação, eles gritavam sobre sua “voz fina” e perguntavam se “iria rebolar também”. o estudante, por sua vez, retomava o ato de exoneração sumária de um servidor, na gestão de ferreira lima, e sua não-nomeação pelo mesmo reitor, mesmo aprovado em primeiro lugar em seleções para docente. bradavam muito por respeito quando os oradores - poucos - lhes agradavam. sua decepção com a fala de que os conselheiros do centro de ciências da saúde votariam pela retirada da homenagem foi, também, bastante sensível. enquanto isso, aproximavam-se de um estudante que estava de pé e diziam que estava “censurando” sua visão, e que seria mentirosa a condenação da censura feita pelo movimento estudantil.
saíram derrotados, acachapantemente derrotados. talvez em suas redes de apoiadores e entre os asseclas do grande empresariado local tenham seus louros. de todo modo, choram as pitangas de uma pretensa “destruição” da universidade. de fato, amargamos péssimas condições orçamentárias, mas isso não apenas não impede que discutamos nossa história, como também é provocado e defendido por esses mesmos agentes públicos que querem posar como defensores de alguma tradição que não existe mais. a dita “destruição” da universidade não é feita por quem nela está e por ela luta diariamente. não tem nada a ver com uma pretensa “ideologização” - até porque é próprio do fascismo querer se creditar fora da ideologia, como se houvesse algum fora. temos a dita autonomia, no final das contas.
hoje tivemos uma pequena grande vitória. vi rostos emocionados ao meu lado, porque um nome não é apenas um nome, é tudo o que carrega consigo. a gente se desacostuma a ganhar, mas os 56 votos favoráveis à mudança do nome do campus mostraram que há questões que nos unem, em especial quando atacados por tantos agentes externos. embora digam que não, houve espaço para o contraditório. houve a fala da advogada, houve um parecer de vistas de um porta-voz dos industriais, usando uma malfadada metáfora de “colocar óculos em uma lente”, ou ainda, usar um software para corrigir a perspectiva histórica. um estudante questionou se o parecer havia sido escrito pelo chatgpt, afinal de contas, ele próprio remeteu à computação. tentou, ainda, jogar para o campo de uma “consulta pública” a questão do nome, como se se tratasse de mera questão de opinião. procurou desfazer as interpretações rigorosas de historiadores e estudiosos, como se fossem apenas movidas pela “paixão”. mobilizou outros dez conselheiros - nenhum dos quais teve coragem de estar presencialmente naquele auditório.
e os meninos? saíram ao som de um “ih, fora!” caloroso da grande plateia. sabemos que eles não desistiram, nem desistirão. mas a história está aí para ser reescrita, felizmente. para que não tenhamos mais que carregar nomes e divisas que não nos cabem no presente. para que não esqueçamos e não repitamos o que de pior nossa pretensa humanidade já se mostrou capaz - embora os meninos mostrem que, como erva daninha, esse pior sobrevive.
que texto MARAVILHOSO! que observação sagaz e que capacidade de arquitetar em palavras e sentidos este processo de reparação de um vil passado.
o texto, muito mais que registro, é uma referência histórica e literária deste momento.
Belíssimo texto, George!